terça-feira, 17 de maio de 2011

A Génese da Heteronímia


A HETERONÍMIA PESSOANA
“O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo o que escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo”
                                      Fernando Pessoa Páginas íntimas de auto-interpretação

            O fenómeno da heteronímia, em Fernando Pessoa, vem desde os 5 ou 6 anos, como afirma numa carta a Adolfo Casais Monteiro, da necessidade de descobrir a sua consciência e a personalidade. Este fenómeno levou-o à concepção de figuras “exactamente humanas” que “eram gente”. Nessa carta de 1935, diz ele, hoje não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha”.
           

Os heterónimos “são como personagens à procura do autor. São personagens de um drama. Cada um é diferente dos outros e fala e procede tal qual é. […] não há que buscar em quaisquer deles, ideias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que não tive”. São companheiros psíquicos.

            Os heterónimos não nascem verdadeiramente senão com os poemas de que são autores, pondo em causa a concepção da sua preexistência às respectivas obras. Com efeito, Pessoa, ao descrever o aparecimento de cada um, mostra como a sua individualidade literária lhe surge apenas no acto de escrever, ou mesmo subsequente a ele.
            O que Fernando Pessoa escreve pertence a duas categorias de obras, o que poderemos chamar ortónimas[i] e heterónimas[ii]. (…) A obra ortónima é do autor, em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterónima é do autor fora da sua pessoa. Na realidade, porém, como certos apontamentos de Pessoa o deixam pressupor, o poeta ortónimo ao mesmo nível dos restantes –ele é, em rigor, um heterónimo a que o autor emprestou a sua identidade privada. Não existe qualquer hierarquia originária, se a houvesse seria entre Alberto Caeiro, que Pessoa denominou “mestre”, e Fernando Pesssoa.
           

Fernando Pessoa, ao sentir-se variamente outro, ao “outrar-se”, cria amigos que exprimem estados de alma e consciência distintos dos seus e, por vezes, opostos. O “eu” do artista despersonaliza-se, desdobra a própria individualidade, torna-se essência dos outros e de si, para melhor exprimir a apreensão da Vida, do Ser e do Mundo.

            Caeiro, Campos, Reis, não são mais do que sonhos diversos, maneiras diferentes de fingir que é possível descobrir um sentido para a nossa existência, saber quem somos, imaginar que conhecemos o caminho e adivinhamos o destino que a vida e história nos fabricam. Ter sonhado esses sonhos não libertou Pessoa da sua solidão e da sua tristeza. (…) Com Caeiro fingimos que somos eternos, com Campos regressamos dos impossíveis sonhos imperiais para a aventura labiríntica do quotidiano moderno, com Reis encolhemos os ombros diante do Destino, compreendemos que o Fado não é uma canção triste mas a Tristeza feita verbo…
            Reis acredita na forma, Campos na sensação, Pessoa nos símbolos. Caeiro não crê em nada: existe.





[i] Ortonímia: do grego orthos= autêntico, verdadeiro; + ónoma=nome
[ii] Heteronímia: do grego heteros=diferente; + ónoma=nome

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